Mais um episódio. Dessa vez a gente vai conversar sobre um tema denso,
transdisciplinaridade e como a gente vai relacionar isso com o corpo e
o movimento. Como é muito denso, eu trouxe ajuda. A Isabela Crema vai
falar um pouco sobre isso, mas também sobre a nossa vivência no
movimento, nas nossas imersões em todos esses anos nessa prática.
Vamos começar? Eu vou começar te apresentando. Apresentar você em
relação a mim é fácil. Isabela Crema é minha aluna, minha professora, mas
ela é antes de tudo minha esposa. E a gente vai falar sobre um tema aqui
que, para mim, ela é uma das pessoas mais indicadas para falar, que é
transdisciplinaridade. Esse nome grande, esse nome que muitas pessoas
estão usando às vezes até sem saber muito bem o que ele significa, mas que
ela vai estar aqui para ajudar a gente a dar uma dissecada, a investigar um
pouquinho e dizer o que isso tem a ver com movimento. Lógico, não será só
isso, será também um pouquinho da nossa experiência, da nossa
experiência praticando movimento, da nossa experiência indo para diversos
eventos. Já são sete ou oito anos viajando o mundo, ao redor do mundo
inteiro, trazendo pessoas do mundo inteiro para cá também para nos dar
mais combustível, mais produtos, para que a gente complexifique ainda mais
essa bela prática que a gente escolheu para a nossa vida. Isabela Crema é
formada em psicologia, tem diversos trabalhos que não se limitam a isso,
ela é professora da Pratique Movimento também, dá aulas aqui, tem trabalho
com jovens, inclusive, com transdisciplinaridade em si, tem trabalho em
comunidades indígenas, tem trabalho até demais, eu acho que ela deveria ter
um pouquinho menos, mas ela para mim é uma super heroína, ela dá conta,
queria que você falasse um pouquinho sobre você nesse início.
Oi. Tá, eu sou psicóloga, sou educadora, eu venho trabalhando com jovens,
principalmente, há muito tempo com transdisciplinaridade, a partir dessa
perspectiva mais da educação. Sou praticante de movimento, aqui é uma
escola muito importante para mim, para a minha vida, em que eu aprendo
coisas demais e que eu aplico na minha vida. E aí já começa essa questão
da transdisciplinaridade entrar.
Mas você falou que é psicóloga, você atende psicologia
mesmo, consultório tradicional?
Sim, eu atendo em um consultório, adolescentes e jovens adultos, eu
coordeno na Unipaz DF a formação holística de base para jovens, que é onde
a gente aplica uma educação transdisciplinar. Eu também faço um trabalho
com um professor meu do Novo México, John Stokes, que a gente vai para o
Xingu fazer trabalho em comunidades indígenas. Eu também
sou várias outras coisas, sou guia de turismo internacional, que também é
um grande laboratório para mim desse
mergulho com os jovens, com os adolescentes.
Você também tem um trabalho com agrofloresta, que coincidentemente fica
no quintal da minha casa, onde a gente planta, a gente colhe, a gente
beneficia esses alimentos, a gente processa eles, não no sentido de
processar quimicamente, são todos naturais, mas no sentido de sofrer
algum processo que às vezes pode ser só uma secagem, moer. Ontem
mesmo você passou o domingo inteiro trabalhando nisso. É um trabalho que
te traz muito prazer mas é um trabalho, é um trabalho muito nobre também.
É verdade, sou agroflorestora com muito amor, uma parte bem importante da
minha vida que inclusive tenho dedicado muitas e muitas horas nele.
Legal, eu vou querer que você fale um pouquinho da sua vivência, do seu
background, do seu histórico de atividade física. Eu vou falar um pouquinho
do que eu sei, se eu esquecer alguma coisa você complementa e eu vou
tentar criar uma linha até o momento que você foi apresentada ao Ido Portal,
nosso professor, a essa perspectiva do movimento, a essa cultura do
movimento. Você é uma pessoa que também sempre gostou de atividade
física, talvez um pouquinho mais orientada para dança, para a música, você é
uma musicista também, esquecemos de dizer isso inclusive. Você praticou
yoga, ashtanga yoga, se eu não me engano, durante oito anos.
Doze.
Doze anos, muito mais do que oito. Você dançou algumas modalidades
diferentes, você fez circo, você treinou circo, praticou circo, acho que treinar
não é uma palavra muito indicada para circo, é praticar. Circo, inclusive, é
uma prática talvez mais conectada com que a gente faz aqui do que
algumas outras. E quando a gente se conheceu, eu estava bem no início, em
ebulição sobre essa cultura do movimento que eu havia descoberto há
pouco tempo que em um episódio passado eu já falei sobre isso, vocês
podem procurar lá, a história do Rodrigo Salulima e da Pratique Movimento, e
eu fui te mostrar uma entrevista dele. Vocês podem buscar essa entrevista, a
gente vai botar na descrição, "Ido Portal London Real" com Brian Rose. E eu
falei "Eu preciso te mostrar um cara, eu queria que você visse essa"
"entrevista aqui com ele." Eu já tinha assistido duas ou três vezes, estava
viciado e era em inglês e na época eu não sabia inglês tão bem, então eu
tinha que ficar assistindo várias vezes, fazendo anotações. E você começou
a assistir, eu lembro que você começou a transbordar, usando essa palavra
mesma me ensinou, você é uma pessoa que transborda, que não contém as
coisas que você sente. E você falou "Rodrigo, o que esse cara está falando"
"é transdisciplinaridade no corpo." Não sei se foi a primeira vez que eu ouvi
essa palavra mas muito provavelmente uma das primeiras. E depois desse
dia um mundo inteiro sobre transdisciplinaridade se abriu para mim.
Inclusive, na formação holística de base que eu me formei na Unipaz
também, nas conversas com o seu pai que escreveu livros e livros sobre isso
e outros temas. E aí eu queria que você falasse um pouquinho, me corrigisse
se eu falei alguma besteira ou acrescentasse se ficou faltando algo.
Faltou a capoeira, que foi muito importante, muito muito importante na
minha vida, que inclusive foi a porta de abertura para mim, foi a partir da
capoeira que eu fui atrás da dança, que eu fui atrás do circo. Então, foi muito
interessante mesmo esse dia porque eu era aquela pessoa que queria fazer
tudo. Eu tive um período da minha vida que eu praticava ashtanga, eu
acordava e ia praticar duas horas de jejum. Eu saía de lá, descia com o carro
na comercial tomando uma vitamina, ia para o circo, treinava mais três horas,
almoçava, ia para a faculdade e no dia seguinte eu tinha três danças. Então,
eu estava fazendo yoga, circo, três danças diferentes. Eu nunca estava
satisfeita, nunca era o suficiente, tinha dias que eu treinava circo duas vezes
no dia, eu sempre queria "Mas eu quero também fazer tai chi,"
"eu quero fazer tal coisa." Então, eu tinha essa coisa de ficar buscando e
nunca achar um lugar que me atendia por completo. Tanto é que, embora eu
tenha ficado no yoga doze anos, no circo não me lembro agora, capoeira
foram muitos anos também, nada me segurou por muito mais do que isso. E
quando a gente, quando você me mostrou aquela entrevista do Ido, eu
lembro até que eu estava deitada com você e eu comecei a sentar, eu fui
sentando e "Que isso, o que está acontecendo, o que esse cara está falando,"
"esse cara está falando tudo o que eu quero, tudo o que eu procuro." Quando
eu escutei o Ido falando, porque é uma entrevista longa, é uma entrevista de
uma hora e pouco, uma hora e meia, então foi uma entrevista que ele teve
muito tempo para destrinchar muitas coisas. E a primeira coisa que me
chamou muita atenção foi a abertura, a abertura dele. E não é uma abertura
qualquer, não é uma abertura solta, é uma abertura que tem um rigor. Por
rigor eu quero dizer, eu estou falando de uma perspectiva de que eu estou
aberta para o mundo, eu quero ver o que está acontecendo, então eu tenho
essa curiosidade do pesquisador de ir para o mundo e ver o que está
acontecendo por lá, no campo da fisicalidade nesse momento, só que eu
tenho um rigor interno, eu tenho meus parâmetros para saber
"Não, isso aqui para mim não serve nesse momento,"
"talvez em outro momento." Então eu pego de cada lugar que eu visito um
pouco, o que não me serve eu deixo de lado. Isso é transdisciplinaridade,
é não se fechar dentro de disciplinas. A disciplina é uma caixa, para eu poder
dizer que eu sou tal coisa, eu pratico tal coisa, quer dizer que precisei
delimitar um campo, onde as coisas acontecem ali dentro. E a
transdisciplinaridade traz esse trans antes que é três, o três que rompe com
o binário. O três que também vem de transgressão. Transgressão é uma
palavra que significa sair do outro lado. Então é uma perspectiva que eu
percebi o Ido trazendo onde ele trazia que ele bebe de muitas fontes, ele ia
para a China, estudava na China mas não se tornava um devoto daquele
professor da China. Ele pegava o que aquele cara tinha para ensinar, trazia
para a vida dele, trazia para a prática dele e o que fazia sentido ficava e o que
não fazia sentido ele descartava e aí ele ia para outro lugar e procurava em
outro lugar. Então, essa abertura com esse rigor é transdisciplinaridade. Essa
busca por não se limitar. Uma disciplina jamais pode ser transdisciplinar
porque são universos diferentes. A transdisciplinaridade não concebe um
conhecimento pronto, fechado, que consegue se limitar e dizer
"Ah, eu faço isso." Por isso que é tão difícil a gente explicar lá fora o que a
faz na Pratique, porque não é uma disciplina. E no mundo a gente foi muito
habituado a isso, a gente quer conseguir dar nome para o que a gente faz.
Esse é um problema, um desafio muito grande que a gente tem. Eu sinto aqui
na Pratique que quando a gente quer começar a explicar, as pessoas
automaticamente já pulam três casas na frente e querem, de acordo com as
vivências delas, encaixotar, rotular o que a gente faz aqui. "Ah tá, então é"
"mistura de pilates com circo. Ah, entendi, entendi, é tipo dança com luta. Ah,"
"legal, é tipo pilates só que tem um pouco de crossfit." Não, essa
necessidade de rotular impede muito com que a gente desenvolva o
verdadeiro entendimento de uma prática complexa. Quando a gente fala
prática complexa, não é porque a gente está querendo se tornar especial ou
parecer inteligente. O movimento é um guarda-chuva amplo. Isso me lembra
muito Bruce Lee, que ele fala "A gente absorve o que funciona,"
"descarta o que não funciona." Aqui, na nossa escola, eu acho que é muito
isso. A gente está aberto para absorver o que funciona, deixar aqui nessa
nuvem de movimento e descartar o que não funciona. E não é só porque é
complicado que a gente não deve falar sobre isso. Eu mesmo, no início,
talvez eu tenha caído um pouco nisso. "Ah, é muito complicado,"
"você não vai entender." Isso era uma das piores coisas que eu fazia porque
eu não estava respeitando o público e as pessoas e os alunos e eu não
estava me respeitando e mastigando essa ideia, deixando ela mais palpável
para o público externo. Aí eu vou só falar mais alguma coisas que você falou,
conectar com um outro episódio nosso. Lembra que eu falei já, galera, que
tinham alguns tipos de público que procuram a Pratique Movimento? Quando
a Bela começou a falar de todo o histórico físico dela, ela claramente é
aquele terceiro público, o entusiasta que sempre gostou, que estava
procurando alguma coisa e só não sabia que isso existia. Então, quando ela
escutou um cara falando sobre essa cultura que tinha, que deu nome, que
organizou isso, todas as células dela falaram "É isso que eu quero." E foi isso
que ela fez, ela se jogou de cabeça nessa nova jornada. Outra coisa que é
muito importante dizer é que, às vezes, vocês ouviram ela falando assim
"Ah, eu fiz capoeira, circo, yoga, dança." e pensaram "Ah, então para ela foi"
"fácil iniciar a prática de movimento." Coincidentemente, semana passada eu
estava na reunião dos professores aqui e um deles falou assim
"Ah, mas a Bela é cabulosa." Usou essa gíria. Aí todos os outros falaram
"Não, a Bela não é cabulosa." E, às vezes, as pessoas podem encarar isso
como um insulto. Mas para mim e para os outros que estavam falando que
ela não era, era o maior dos elogios porque ela é super esforçada. Você é
uma praticante de verdade, você chegou aqui com pouquíssimas qualidades,
em uma ou outra área específica. Ah legal, já tinha uma flexibilidade legal,
mas a gente não usa tanto a flexibilidade aqui, a gente usa mais a
mobilidade que é ela combinada com a força. A parte mais atlética,
de footwork, você não tinha nada de parada de mão, você tinha lesões
antigas que você estava tentando curar. Então, só para fazer, dar uma
explicada aqui né, que às vezes a gente ouve isso e pode ser que assuste,
que para quem fez tanta coisa assim fica fácil. Não, lembra, é para qualquer
tipo de pessoa, ter um corpo é o maior pré requisito e a gente não trabalha
muito atraindo aquelas pessoas com talento. Essas pessoas, na verdade,
não se sentem muito atraídas por nós, porque elas precisam ter que deixar o
ego de lado oito vezes mais do que aquela pessoa que não tem. Então você,
talvez as pessoas veem hoje em dia o tanto que você já caminhou e queiram
te rotular assim como talentosa. Eu digo para vocês que não, ela é
esforçada, ela é uma aluna, ela é uma praticante. E voltando para a
transdisciplinaridade agora. Aqui nas aulas eu costumo falar para os alunos
que eles tem que trazer diversos chapéus. Tragam diversos chapéus, no
sentido de você não sabe o que você vai precisar na aula. Então, a gente
pega esse dito popular né "Não, vou ter que usar um chapéu diferente"
"para essa atividade." Não tem como você trazer só o da força, só o do
guerreiro porque você não sabe se você vai precisar o do artista e eu acho
que transdisciplinaridade tem muito a ver com isso né, com os chapéus.
Eu queria que você falasse um pouquinho sobre isso, sobre quais são as
áreas mais importantes, se é que existe o mais importante
que tem a ver com transdisciplinaridade.
Sim, e é muito bom, só antes de entrar nisso, abrir um parênteses que tem a
ver com o que eu puxar em seguida, que é isso, esse olhar de que quando a
gente fala de prática de vida, de como... A gente de vez em quando fala aqui,
a prática de movimento se confunde com a vida, mas eu não acho que o
movimento se confunde com a vida porque eles não são duas coisas
separadas. Não pelo menos da forma como a gente faz aqui. Então, por
exemplo, aqui, embora a chamada da Pratique seja a prática física, o lugar
onde eu aprendi a ser aluna foi aqui. Eu não sabia ser uma aluna, eu não
tinha foco, eu aprendi a ter foco na prática aqui, então são muitas outras
coisas. E aí sobre essa questão, a forma mais simples da gente explicar o
que é transdisciplinaridade porque é uma área que nasce na física quântica.
Então é muito complexo, daria para fazer quinze podcasts para poder
realmente explicar a partir dessa perspectiva. Então, a forma mais tranquila
de explicar o que é transdisciplinaridade é que ela é o ponto de encontro,
ponto de convergência entre ciência, filosofia, arte e tradições de sabedoria.
E o Basarab Nicolescu que é o cara que escreveu o
"Manifesto da Transdisciplinaridade" que é um livro incrível, super
recomendo, ele traz isso, que qualquer sociedade, cultura que escolha um
desses quatro pilares como sendo mais importante que os outros está
fadada ao fracasso. Por exemplo, sociedades que só ficaram focadas nas
tradições de sabedoria, elas foram varridas pelo modernidade, não
sustentaram o rolê. A nossa sociedade que coloca ciência como soberana,
absoluta e a filosofia está lá embaixo, a arte mais embaixo ainda, quem é
que questiona a ciência? A filosofia questiona a ciência, então se a gente não
valoriza a filosofia tanto quanto a gente valoriza a ciência, a gente acaba
criando uma ciência que é desonesta, uma ciência que está comprometida
não com a vida, com os processos de vida. Então, a transdisciplinaridade,
a gente fala dela como esse ponto de encontro. E é muito incrível ver como
que ela se manifesta aqui a partir do que a gente chama de atitude
transdisciplinar, que é esse olhar refinado porque a gente não está só
praticando movimento, o nome do grupo dos professores por exemplo é
"Pratique Sapiência". Então é um grupo de pessoas que se debruça com todo
o nosso aparelho cognitivo maravilhoso sobre a prática, a gente não está lá
só fazendo por fazer, a gente faz o que a gente faz, a gente pensa sobre o
que a gente faz, reflete, transforma, puxa daqui, pega de lá, está o tempo
inteiro em transformação. Então, não tem como separar. A gente está lá,
quando a gente está lá fazendo os movimentos mais somáticos, mais
ligados um pouco mais a dança, como que a gente separa isso de arte?
Como que a gente separa o nosso corpo da arte? Como que tem arte sem o
corpo? Então, na verdade, é uma forma de olhar para o mundo. Só que a
forma de olhar para o mundo, o olhar é uma coisa muito importante porque a
forma como eu olho para o mundo tem a ver com o que eu acredito por atrás
e a forma como eu olho para o mundo vai determinar a forma como eu
interajo com o mundo. Então se eu olho para o corpo e para mim o corpo é
uma máquina, eu vou me relacionar com pessoas como pessoas fossem
máquinas porque esse é o meu pressuposto, esse é o meu paradigma, isso
que está por trás do que eu acredito. Então, esse olhar transdisciplinar que
eu acho que é a coisa mais importante de falar aqui, que gera essa atitude
transdisciplinar, é esse olhar aberto, olhar que olha para um aluno, que olha
para a nossa prática e não limita o nosso aluno a só um corpo físico. Ele não
é só um corpo, ele também não é só uma cognição, ele também não é só um
corpo emocional, ele é uma totalidade, a gente é uma totalidade. E eu acho
que é por isso que a prática costuma tocar tão profundamente as pessoas.
É muito comum depois de aulão, está metade da turma chorando porque eu
acho que é um lugar onde a gente está conseguindo enxergar as pessoas
dentro de um contexto educacional, enxergar as pessoas como uma
totalidade, se relacionar com elas como uma totalidade, que pressupõe uma
coisa muito respeitosa, um olhar muito respeitoso para o ser humano e a
para as potencialidades, o que a gente está fazendo aqui. Acho que só o fato
da gente não se chamar de academia, de se chamar de escola já traz isso,
que o nosso foco é no processo, não é na construção de uma coisa rígida
porque aí não seria transdisciplinar. Então, o fato da gente ter esse corpo,
você fala muito isso nos aulões, onde a gente vai estar daqui a cinco anos,
daqui a dez anos, a gente tem ideias mas a gente não consegue dizer
exatamente porque é uma prática que está aberta, que está o tempo inteiro
em transformação, que está o tempo inteiro se lapidando, o tempo inteiro
melhorando, transformando. De repente isso aqui a gente fazia isso muito no
começo e a gente percebe que não faz tanto sentido botar tanto foco nisso,
então vamos botar mais foco em outra coisa e assim a gente vai crescendo
e aprendendo e isso é real, isso é vida. Se a gente olha para a vida, o que está
pronto? O que existe na vida que está pronto, não tem nada que está pronto.
A gente está sempre em um processo de ir para um outro lugar.
A gente sobe uma montanha, tem que descer.
É um verbo, uma construção. Falei muito sobre isso também no nosso
primeiro episódio, que a Pratique é uma página em branco, ela é modular, ela
é mutável, ela cria novas conexões, ela se desfaz das conexões antigas.
E toda vez que eu estou lendo sobre transdisciplinaridade ou sobre outras
teorias também que tem a ver com isso, por exemplo, a teoria rizomática do
Deleuze e Guattari. É isso, o conhecimento é um rizoma, acho que tem muito
a ver com transdisciplinaridade também. Um rizoma, para quem não sabe,
é um gengibre por exemplo. O gengibre é uma raiz, uma raiz que não tem um
início e não tem um fim, você não sabe aonde começa o gengibre e aonde
termina o gengibre. Ele pode crescer por qualquer um dos lados. Se você
quebrar ele, ele volta a crescer de novo. Então aqui na nossa prática, a gente
não bota muito hierarquia. A gente vai mapeando mais ou menos aonde a
gente está, aonde cada aluno está, qual é o seu momento de vida e como
você vai usar a prática a seu favor. Outra coisa interessante que você falou
sobre às vezes dos aulões despertar sentimentos nas pessoas. As pessoas,
eu acho, estão com abstinência de sentir hoje em dia e, às vezes, a gente
sentir no próprio corpo não tem como fugir. Com a mente a gente ainda
consegue bloquear, a gente cria umas construções, a gente cria uns
bloqueios, cria umas couraças e a gente consegue se afastar desses
sentimentos. Mas o corpo não mente, às vezes ele vai gritar e vai ser difícil
reagir em oposição ao que esse corpo está gritando. Eu falei o corpo não
mente, mas o corpo fala e o corpo mente também. E se a gente só ouvir o
corpo, a gente às vezes também não faz nada. Então, não quero romantizar
essa inteligência do corpo, eu não quero dicotomizar dizendo também que a
gente tem um corpo e a gente tem uma mente. É trans, é uma coisa só.
É uma dicotomia muito antiga, é muito anos 70 essa divisão e eu não quero
dizer também que a gente tem que sempre ouvir o que o nosso corpo está
falando que é o certo. Porque se a gente só ouvir o que o nosso corpo está
falando sempre, vai ter dia que a gente não vai nem levantar da cama porque
tem dia que ele vai falar assim "Fica na cama, pelo amor de deus, tudo que"
"eu não quero que você faça é que você levante para trabalhar,"
"para fazer esporte." Vai ter um dia ou outro que você vai ter que se respeitar,
ser generoso com você, se dar um presente, vai ter um dia ou outro, mas tem
que ter muito cuidado para não usar isso como desculpa, como uma
fraqueza para não seguir em frente. Várias vezes não é isso que vai ser o
certo para acontecer. Você falou também sobre o foco e a gente está
falando sobre um tema muito denso. E eu escolhi começar por esse tema
mais denso na nossa conversa porque seria mais fácil do público, de vocês,
alunos e ouvintes, manterem o foco. Se deixasse mais para o final, talvez já
estivesse de saco cheio ali. A gente tem um tempo limitado mas isso não
quer dizer que a gente tenha que se rotular, sou focado, não sou focado.
Você mesma disse "Eu não tinha foco, eu percebi que não tinha foco." Então,
eu queria deixar um recado aí para vocês pensarem também que foco é
treinável. Então foco é treinável. Dito isso, eu vou tentar fazer mais uma
pergunta só sobre transdisciplinaridade, então atenção, foco, treinem agora
ainda um pouquinho, tentem mastigar essas ideias. Depois a gente vai para
uma parte mais leve, falando um pouquinho da sua história no movimento,
dos nossos movement camps na Tailândia, na nossa prática em casa
também, descobrir se o santo de casa faz milagre ou não. Não sei se a gente
vai entrar nesses temas polêmicos para o casal, vamos tentar deixar leve.
Mas eu queria que você falasse um pouquinho sobre o especialista e o
generalista e aí depois eu posso fazer uma relação com o que você falar
com o especialista e o generalista na prática de movimento, na escola
Pratique Movimento, na nossa perspectiva que a gente ensina aqui.
Muito legal. A gente criou, na verdade o paradigma, esse solo aonde a gente
pisa, aonde a gente constrói as nossas fundações e constrói as casas em
cima é o paradigma, como a gente se relaciona com o mundo, o que a gente
entende por mundo. A gente vem vivendo há séculos dentro de um
paradigma que gerou um fracionamento da gente. A gente entende, a gente
aprende que a gente tem uma mente, que a gente tem um corpo, que a gente
tem emoção e por mais que a gente saiba lá no fundinho que isso é uma
grande mentira, que nada é separado de nada, a gente continua agindo na
vida como se fosse. Então, esse paradigma, cientificista que fracionou e
pegou o todo e dividiu em milhões de pedacinhos para que a gente se
debruçasse infinitamente que tem o seu lugar muito importante, a gente
precisa de pessoas especialistas entrando em algumas áreas e descobrindo,
fazendo coisas importantes. Ela gerou uma incapacidade geral da gente
enquanto humanidade de conseguir dar três passos para trás e voltar a
enxergar o inteiro. O Nicolescu, tem uma parte do livro dele
"Manifesto da Transdisciplinaridade" que eu acho fantástica que fala assim
"A soma dos maiores especialistas não é capaz de gerar nada que não seja"
"uma incompetência generalizada." Porque o fato é que a vida não é dividida.
Como é que a gente vai solucionar um problema do aquecimento global com
uma especialidade? A gente não vai resolver. Como a gente resolve o
problema da crise hídrica no DF com um geógrafo?
E também a soma das partes é maior que o todo. O Ido costuma dizer muito
isso na prática de movimento. 1 + 1 + 1 + 1 não é 4, 5, é 17.
É 17, exatamente, que é a complexidade que é um dos pressupostos básicos
da transdisciplinaridade. Então, a gente gerou essa coisa. Meu pai tem uma
frase que eu acho muito maravilhosa, eu morro de rir dela, que ele fala assim
"O especialista, aquele exótico ser que sabe quase tudo sobre quase nada"
"e o generalista, aquele exótico ser que sabe quase nada sobre quase tudo."
Nenhum dos dois vai conseguir dar uma resposta real para a gente sobre os
processos da vida porque os processos da vida não acontecem dessa
maneira. E eu percebo na minha experiência aqui na Pratique, eu acho que a
digital desse trabalho, da forma como a gente pratica o movimento, é
justamente encontrar o caminho do meio, é transgredir essas duas
polaridades, que não é se perder nas minúcias, que é o especialista, a gente
vai, vai, vai até que a gente se perde ali, de repente um ortopedista que não
consegue mais tratar um ombro porque ele se especializou no dedão do pé
esquerdo, por exemplo. A gente não se perder em uma área e ao mesmo
tempo não ficar nessa coisa solta de "Ah, hoje vamos fazer tal coisa."
Mas a gente não se aprofundou nisso, a gente não sabe o porquê que
a gente está fazendo isso, que aí vem aquela questão de falta de foco,
de falta de clareza, que não é o que transdisciplinaridade é. É essa abertura,
essa flexibilidade junto com um rigor, com um rigor que vem da gente ter
claro o que é importante para a gente. E aí a gente entrar nesse processo,
que é o processo que a gente trabalha aqui, que é o foco no processo e não
no lugar aonde a gente vai chegar. Em outras especialidades talvez eu tenha,
meu foco é "Eu quero fazer, eu quero ser capaz de fazer tal movimento,"
"eu quero ser a melhor paradista de mão do mundo para entrar no Guinness."
Se essa é a sua missão, você vai ser infeliz aqui porque a nossa missão aqui
não é chegar em um lugar, é estar sempre caminhando. E isso é essa
abertura da transdisciplinaridade. Respondeu um pouco?
Respondeu demais. É até um pouco da crítica que eu tenho que algumas
pessoas na cultura do movimento falam isso "Nós somos generalistas"
"no movimento." E eu nunca fiquei a vontade com essa palavra. Não ser
especialista, tudo bem, eu sei que não sou especialista, mas eu nunca me
considerei um generalista ou pelo menos... Pode ser até que eu seja
generalista agora, que eu ainda não cheguei em algum lugar, mas eu fico
pensando que uma das missões, algumas palavras-chaves, é isso que você
falou, abertura, descoberta, auto-descoberta. Então eu, o Rodrigo Salulima,
nessa vida, nesse mundo, caminhando desse jeito com tudo, com o
meio ambiente que eu nasci, com os genes que eu recebi, eu vou absorver
informações, eu vou criar conexões, eu vou transbordar conhecimentos, eu
vou criar coisas novas. Então, é mais sobre integrar do que generalizar ou se
especializar. É um integrar mas é um integrar que transborda, que se
mantém aberto para mudanças, que vai caminhando, e aí eu vou usar um
pouquinho do termo do tipo de agricultura que a gente pratica, que é a
agricultura sintrópica. É uma sintropia. Sintropia é o contrário de entropia.
A entropia vai do complexo, vai perdendo, um sistema entrópico, a gente
aprende isso no colégio, vai se destruindo, se auto-destruindo, vai do
complexo para o simples. A sintropia vai do simples para o complexo.
Eu vejo muito isso com os alunos que chegam aqui. Eu, inclusive, comecei a
usar alguns termos da agricultura sintrópica, do Ernst Götsch, a gente pode
botar na descrição aí um pouquinho sobre ele também. Eu comecei a usar
muitos termos da agricultura sintrópica aqui com os alunos porque a
plantação, o sistema ambiental, a natureza porque não existe separação, não
existe a natureza lá e eu aqui, nós somos natureza, é um sistema sintrópico
se você criar as condições, se você deixar o ambiente favorável para a
sintropia acontecer e não receber estímulos externos, principalmente de nós,
seres humanos. Então, a sintropia caminha do simples para o complexo.
Aqui, os alunos chegam no simples, às vezes com poucas ferramentas,
às vezes um corpo que foi entropizado pela vida, pelo trabalho, por posições
repetitivas durante muito tempo. E aí, ao longo do tempo, a gente começa a
criar as condições, a complexificar a parte mecânica, as fibras musculares,
o calibre dos tendões, as conexões neurais, o repertório. Então, a gente
começa a complexificar se movendo do simples para o complexo. Então, por
exemplo, quando a gente está plantando, se a gente quiser plantar uma
árvore de um sistema mais avançado, de um sistema de abundância, lá no
primeiro ano que a gente estava plantando a gente botasse aquela árvore lá,
ela talvez não floreceria, não ia germinar porque as condições ali não
estavam favoráveis para aquilo. Eu vejo muito isso com os alunos aqui, não
adianta ensinar coisas muito complexas, falar muitos detalhes, se as
condições daquele terreno, daquele ambiente não têm os nutrientes
necessários para florescer. Então, ao longo do tempo a gente vai
complexificando, vai dando mais ferramentas e vai, aí sim, chegou o
momento daquela árvore, chegou o momento daquele aprendizado. Eu acho
que deu a parte do foco, a gente já deixou um pouquinho mais denso aqui,
a gente já deu muita coisa para refletir. Nós não estamos aqui, só deixar
claro galera, para dar respostas, a gente não está aqui para dar um
conhecimento fechado, a gente não está aqui para dar certezas. Esse tema,
principalmente, a gente está mais levantando dúvidas, levantando reflexões,
deixando uma pulguinha atrás da orelha para vocês mesmos fazerem a
conexão. Transdisciplinaridade com a prática de movimento com a vida,
porque como a Bela bem falou não tem separação entre movimento e vida.
Eu falei isso na introdução do primeiro episódio, vida é movimento,
movimento é vida. Quando acaba o movimento, acaba a vida. Então, a gente
potencializar o movimento, para mim, é potencializar a vida.
Deixa eu só fazer, só para finalizar essa parte, só fazer uns parênteses com
isso que você falou por último, a sua fala foi um exemplo perfeito de tudo
que a gente vem falando aqui, que a transdisciplinaridade procura essa
unidade no conhecimento, não no sentido de criar um conhecimento que
seja único, que explique tudo, mas isso, de saber que... Será que é muito
diferente eu olhar para um cuidado com o solo e olhor para um cuidado com
meu corpo? Essa unidade, esse ponto de conexão, como se a gente fosse
beber em várias áreas do conhecimento que não são só das áreas físicas
mas de outras áreas e conseguir fazer igual aqueles desenhos de criança
que a gente vai ligando os pontos e vai entendendo que aquilo ali forma um
todo muito maior do que eu no meu corpo dentro de uma sala fazendo uma
soltura de braço. Só fazer esses parênteses, que essa sua fala, fazendo essa
conexão do plantio, do SAF, sistema agroflorestal com o corpo e o praticante,
foi um exemplo perfeito disso, do que significa essa busca por essa unidade
no conhecimento que bebe da diversidade.
Acho que está dentro da abordagem transdisciplinar a gente estudar as
diversas artes, citando Musashi aqui. Estude as diversas artes e conforme a
gente começa a evoluir, a aumentar a complexidade de entendimento de
uma área específica e a gente começa a estudar uma outra área, a gente
começa a criar pontos de conexão. Então não é incomum, por exemplo, aqui
entre os alunos ter algum músico, um pianista, um baterista e eles
automaticamente começam a escalar esse conhecimento do próprio corpo,
do movimento, de um modo muito mais rápido do que outros pois eles foram
tão a fundo nessa prática de vida que é a música e tem tantas coisas em
comum, que eles começam a achar outros pontos em comum também.
Vamos transgredir esse tema agora de transdisciplinaridade e vamos
transbordar para outros assuntos. Um assunto mais leve, mais pessoal, eu
quero saber das suas experiências, vou falar das minhas também. Na cultura
do movimento como um todo mas eu acho que, principalmente, um grande
diferencial que abriu a nossa cabeça de um jeito muito, muito especial foi
quantos eventos a gente foi no Movement Camp, que é o maior evento de
movimento do mundo, na Tailândia. A gente foi pela primeira vez em 2015 e
desde então todos os anos seguidos. São mais ou menos 200 praticantes de
movimento ao redor do mundo inteiro, reunidos em um local só. Então, a
gente está tomando café da manhã junto, almoçando, jantando, cada um
dorme no seu quarto, mas praticando movimento a manhã inteira, a tarde
inteira e a noite, palestras, vivências, apresentações. A gente está comendo,
respirando, transbordando movimento mesmo. Para mim, o primeiro ano...
Cada ano foram sacadas diferentes, mas o primeiro ano, para mim foi assim,
o que?! Existem mais igual a mim no mundo? Sabe aquele senso de conexão
"Encontrei minha tribo. Não acredito que tem mais doido assim." Porque de
perto todo mundo é doido, quem acha que não é só está julgando a doidera
do outro, mas alguém vai te achar doido com certeza. Então é melhor
assumir que a gente é doido, cada um na sua loucura mesmo. De perto todo
mundo é doido. Chegou lá eu falei "Meu deus, tem um monte de gente igual"
a mim aqui." Um network incrível, uma inspiração incrível, momentos de
diversões incríveis também, porém não só isso. Qualidade de ensino como
eu nunca vi em outro lugar. A qualidade dos professores, o modo como eles
forneciam os conteúdos para a gente, para a gente digerir. Eles não davam
nada mastigado, eles não davam uma bebida proteica que já está
pré-digerida, que seu corpo vai digerir rápido ali. Eles davam a comida para a
gente mastigar e quebrando em moléculas menores e digerir. E a gente tinha
que escrever, não pode filmar, não pode fotografar. Inclusive, foi lá que eu
comecei a adquirir a prática de caderninho. Hoje em dia, eu contei outro dia,
eu estou com vinte e três cadernos cheios, só sobre movimento, só entre
aspas, porque nunca é só sobre movimento. Inconscientemente,
invariavelmente a gente começa a falar sobre outros temas mais complexos
ali. Então, aprender a aprender foi um dos principais ensinamentos para mim
em todos esses anos indo para lá me conectar com essas pessoas. Várias
se tornaram amigos para a vida inteira. Tem gente lá que, é engraçado
porque eu comecei a perceber isso, só um parênteses engraçado aqui.
Muitos amigos que eu fiz lá, principalmente a Petra da Austrália e o Jonathan
Clayton de Dubai, a conexão foi tão grande que eu estou falando com eles
em inglês e toda vez que eu começo a ficar muito empolgado eu começo
automaticamente a falar em português. Então devem trazer alguma
lembrança boa, afetiva, exatamente isso que eu queria dizer, uma lembrança
afetiva que me faz isso. Eu queria saber um pouquinho,
falei um pouco de mim agora, tem muito mais coisa para falar, mas eu queria
um pouquinho que você falasse das suas experiências no
Movemente Camp ou outros eventos também.
Primeiro Movement Camp que a gente foi, a minha sensação foi, tipo assim,
cara fudeu porque eu não vou mais deixar de vir. Não era mais uma pergunta
"Ah, você vai no ano que vem?" Não era uma pergunta cabível. É um caminho
sem volta. É muito difícil colocar em palavras, inclusive, eu tenho uma
tendência de ser boa em colocar em palavras essas coisas. Eu lembro que
eu levei, eu tinha a necessidade de escrever sobre a experiência, eu levei 7
dias e não conseguia escrever nada. Eu levei muito tempo para conseguir
integrar tudo que acontece lá. Mas assim, a qualidade do processo de
ensino, a qualidade dos professores, a qualidade da comunidade, das
pessoas que se acoplam ali junto desses professores era uma coisa
realmente muito incrível e eu aprendi coisas para a minha vida. Inclusive, nas
minhas sessões de terapia, é quase toda sessão, eu em algum momento
faço alguma referência ao Ido, à cultura do movimento, à Pratique, a esse
corpo de conhecimento que está sendo criado. Entre elas, algumas coisas
muito importantes, por exemplo, eu expandi incrivelmente o meu
entendimento sobre o que não é ética, o que é ética dentro de uma escola.
O que é respeito por uma prática? O que é respeito por um professor?
Algumas coisas que eu nunca tinha parado para pensar e que, por exemplo,
primeira coisa que o Ido faz quando a gente chega no Movement Camp,
na primeira reuniãozinha de manhã antes da gente ir para as primeiras aulas,
ele dá todos os avisos e ele falou uma coisa que eu achei muito
impressionante. Ele falou assim "Não tomem os professores"
"como seus reféns." Professor é gente, professor precisa sentar, comer,
descansar, ficar em silêncio. Então, às vezes, é interessante isso né, que não
é óbvio. Eu fui para o Movement Camp, a gente praticava de 8 a 10 horas por
dia de movimento. Então, ou seja, uma coisa que a priori é extremamente
física e muito do que eu levei embora de lá foram reflexões que extrapolam
esse mundo físico. De ética, de respeito. Por exemplo, uma outra coisa que
me tocava muito e a Shai falava muito disso com muita clareza, de que eles
tinham uma forma de entregar para a gente o que eles estavam pedindo
tão completa, ao mesmo tempo não é uma alimentação líquida mas eles
oferecem aquele conteúdo de tantas maneiras diferentes, tão completas que
eles entregam toda a responsabilidade na mão do aluno porque não tem
mais o que ser dito daquilo ali. Se você não observou... Uma outra coisa que
eu achava muito incrível também é a forma como o Ido acordava a gente.
Quando tinha um aluno na sala que estava com uma cara meio borocoxô ou
com um jeitinho de sono, a forma como ele dava um "Ou, também não está"
"fácil para mim aqui não, eu estou demonstrando para você, eu estou"
"mostrando para você o meu desinteresse?" Então, são várias coisas que são
para além do mundo da prática física que me ensinaram incrivelmente.
Acho que um outro professor nosso que falou uma coisa muito interessante,
o Martin Kilvady, ele falou que hoje em dia está um excesso de curso de
formação de professor. Mas isso aí, se eu não me engano, ele ouviu de outro
professor dele, eu não vou saber citar agora infelizmente. Mas aí, eu ouvi
dele e eu estou passando para vocês. E ele estava sentindo falta de curso de
formação de aluno, que as pessoas tem que aprender a serem melhores
alunas e isso foi uma das coisas que eu mais aprendi indo para esses
eventos. Além de que, eu aprendi a procurar bons professores. Hoje em dia,
eu tenho diversos professores que talvez eu não tivesse ido atrás, o meu
filtro não estivesse muito bom para saber separar um mau professor de um
bom professor. Então hoje em dia, eu tenho diversas pessoas em que eu me
inspiro, posso falar sobre essas outras também. O Ido com certeza foi o
momento de ignição mais potente para mim, mas eu continuo bebendo de
outras fontes para poder criar a minha fonte, a fonte do Rodrigo, do Rodrigo
Salulima. E aí as pessoas virem beber dessa fonte também. Então, para ser
um bom professor, o pré requisito máximo, na minha opinião, é ser um bom
aluno. E às vezes as pessoas querem pular etapas, elas querem se chamar
de professor de movimento antes de serem praticantes de movimento.
Praticante a gente nunca vai deixar de ser galera, se a gente está se
chamando de prática de vida, então ser um praticante é um pré-requisito
para continuar dentro dessa prática. A Shai também, que você mencionou,
só para eu não me perder, você mencionou da responsabilidade. A gente
tenta explicar muito bem aqui a tarefa. Então, ser um professor, se eu não me
engano foi a Fátima Freire que falou isso, filha do Paulo Freire. Ela falou que
o papel do professor é muito pequeno, é muito curto, não é pequeno, é curto
o tanto, o intervalo de tempo que ele pode intervir. E a pessoa vai viver a vida
dela. Para isso, ele tem que se esforçar para ser o melhor dos melhores
profissionais. Ele tem que estudar diversas áreas para que naquele intervalo
curto, seja o mais potente o possível para o impacto que ele causar naquela
pessoa seja potente, seja duradouro. Então, acho que o professor tem que
ser artista, tem que ser poeta, tem que ser cientista, tem que ser caçador,
tem que ser tudo. Ele tem que ser um comunicador também. Eu mesmo, foi
uma das metas. Eu costumo botar metas todo ano, eu adoro, recomendo a
todos fazerem se faz sentido para vocês de no final do ano, réveillon e virada,
eu boto as minhas metas. De 2016 para 2017, eu botei
"Me tornar um melhor comunicador." Porque eu sentia que eu tinha muitas
ideias na minha cabeça mas que não conseguia botar elas para fora. Então,
se comunicar é uma coisa muito importante para quem está aqui dando
aula. E a gente tenta se comunicar de uma forma clara e a gente tenta
mandar uma mensagem do emissor para o receptor. O emissor é o professor
no caso, o aluno é o receptor. Essa mensagem tem que chegar lá sem ruído.
Essa terminologia é tipo 1 que a gente chama, sai da boca do professor, vai
para a cabeça do aluno. Depois tem terminologia tipo 2, que quando o aluno
decodifica essa mensagem, ele tem que mandar para o corpo dele. Se ele
não conseguir fazer, aí já é outra história, aí pode ser um bloqueio mecânico,
o corpo calcificou alguma parte, pode ser um bloqueio neural, ainda não tem
aquela comunicação neural ocorrendo. Mas por que eu estou dizendo tudo
isso? Porque a gente tenta explicar tão bem, a gente faz o processo da
terminologia tipo 1, a gente mostra como eles vão fazer a terminologia
tipo 2, a gente dá exemplos, a gente demonstra, a gente passa toda a
responsabilidade para o aluno e isso assusta, por isso que a nossa prática
assusta muito. Quem falou isso foi a Shai, em uma das aulas, Shai Faran.
Nossa prática assusta porque depois de tudo explicado, a responsabilidade
está com você, não vai ter alguém que vai fazer por você. Então, eu já disse
isso alguma vez aqui, a gente não deve terceirizar tudo, muito menos o
nosso corpo. Nós somos o principal agente, responsável
por essa evolução do nosso corpo.
Sim, e eu acho que uma parte muito importante também disso que você está
trazendo dos professores e que foi algo que eu também me assustei com o
nível que isso chega lá no Movement Camp com os professores que estão lá,
é aquele termo do Taleb, "skin in the game", que é isso que você falou,
da pessoa que nem é um praticante ainda, eu nem consigo alcançar o que
isso significa, eu não tenho a prática, eu ainda não sei usar o chapéu do
aluno e eu já quero ser um professor. Isso é não ter "skin in the game", eu não
botei minha pele para jogo para ir lá e ver de fato o que acontece, o que custa
fazer aquilo ali, o que custa em tudo, em termos de corpo, em termos de
recurso, em termos de coisas que eu abro mão para poder estar ali. E eu
acho que isso é uma coisa muito importante, foram o Ido, a Odelia e a Shai,
que eram os três principais naquela época, são das três pessoas que eu
conheço entre as pessoas que você fala "Nossa, walk the walk, talk the talk"
que eles falam, fala o que você fala mas bota o pézinho ali onde você está
dizendo que está caminhando, você está caminhando isso que você está
dizendo para as pessoas? E aí eu acho que é uma coisa muito importante
porque, tem até uma frase de educador que eu não vou me lembrar o nome
agora que fala assim "O que você faz fala tão alto"
"que eu não escuto o que você diz." E eu sinto que, eu percebo que essa
forma que a gente tem desenhado de se comunicar, de estar na prática, isso
de falar que o professor é para sempre um aluno. No campo da psicologia,
por exemplo, isso é uma coisa que eu sempe falo, eu não indico psicólogos
clínicos que não fazem terapia. Qual é o sentido? Eu atendo as pessoas no
meu consultório mas eu não faço a minha própria terapia? Então, eu acho
que é uma coisa que é um diferencial também, de praticar o que
a gente está falando, de ir para a vida.
Aquela famosa frase em inglês, 'walk the walk', que inclusive vai ser um dos
temas de um podcast futuro, a gente caminhar o nosso próprio caminho.
Já que você citou alguns professores do Movement Camp, eu queria que
você falasse de um encontro que você teve com um professor muito
especial para você, para mim também, mas eu sei que ele é muito especial
para você, que é o Dudi Malka. A Bela, como a gente já disse logo no início,
teve uma vivência de 12 anos de yoga. Eu também já tinha a minha vivência
de prática interna e eu costumo chamar de prática interna que é como a
gente chama aqui dentro da nossa escola. É um dos pilares dos ensinos, nós
trabalhamos basicamente com cinco pilares que vão se subdividindo em
vários outros mas um deles é esse pilar somático que a prática interna está
dentro. A gente não gosta muito de chamar de yoga ou meditação mas tudo
isso está lá dentro. Acho que prática interna é um nome que traduz melhor. E
ter encontrado o Dudi lá foi muito poderoso para mim, ele continua
moldando, inspirando, ensinando, mas você inclusive tem uma comunicação
com ele até hoje, você se comunica, você pergunta e eu sei que para você foi
um impacto especialmente muito grande no modo como você enxerga,
aborda e pratica mesmo essa parte somática da nossa prática.
Sim, encontrar o Dudi foi uma coisa muito importante na minha vida, muito
importante porque eu não só pratiquei doze anos de ashtanga como eu sou
filha de um pai que medita não sei quantas horas por dia desde que eu sou
pequenininha. Eu tenho uma foto com eu com dois anos de idade no colo do
meu pai meditando. Então, eu sempre vivi muito dentro desse universo,
sempre tive todos os livros em casa, livros do hinduísmo, os textos sacrados
do yoga, meu pai praticou yoga a vida inteira e tai chi. Então, eu tinha aquela
referência e é uma referência que sempre foi muito especial na minha vida
em termos de trabalho interno, de entender que essa vida física tem outras
coisas mais profundas. Eu acho que eu durei doze anos no yoga porque eu
sentia que tinha alguma coisa por trás que eu não estava conseguindo
acessar, que eu não estava conseguindo enxergar. Encontrar o Dudi para
mim foi muito incrível porque parece que tudo que foi perdendo o sentido
para mim com o tempo, que é essa coisa muito mercantilizada, o yoga veio
para o ocidente de uma maneira muito mercantilizada, virou uma marca, eu
ia para congressos de yoga. E aí tinha roupas de yoga que são caríssimas,
as roupas de prática de yoga. Tem todo um comércio que foi feito em torno
disso e hoje em dia a gente brinca até quando a gente vai dar aula.
"Gente, esse yoga que a gente pratica aqui não é o yoga que você vai"
"conseguir fazer um post no instagram com pôr do sol." Acho que o Dudi
conseguiu trazer de volta para mim o porquê, se você vai ler os textos do
yoga, você vê que o asana, que são as posturas psicofísicas que a gente faz,
é um tijolinho e isso inclusive é uma frase dele. O hatha yoga, que é o yoga
que pratica asana, é um tijolinho no palácio do yoga. Ele está a serviço,
a prática física está a serviço de preparar meu corpo para
a parte mais importante que é sentar.
Eu fala que todos os asanas, a função principal de todos os asanas é te
preparar para o único asana que realmente importa, que é ficar sentado.
O primeiro yoga sutra é yoga é o cessar das ondulações mentais. Só que a
gente traz isso para o mundo moderno, para esse mundo ocidental como um
mercado, um mercado de roupas e de asanas quando na verdade isso era
para ser um pedacinho do caminho e eu sinto que foi nesse rolê que o yoga
foi perdendo um pouco o sentido, o yoga da maneira como eu praticava foi
perdendo um pouco o sentido e quando eu encontrei uma pessoa me
trazendo isso com essa finalidade de uma maneira muito mais estruturada,
de maneira muito mais real. Aquilo me conectou assim de um jeito,
me fisgou de um jeito muito importante. E é incrível, às vezes eu mando,
já aconteceu de eu mandar um whatsapp para o Dudi fazendo uma pergunta,
você viu já uma vez, inclusive né, eu fiz uma pergunta sobre a minha prática
enquanto eu estava menstruada e ele me responde um texto que dá para eu
imprimir, deixar na beira da cama e ficar lendo várias vezes porque ali dentro
tem uma quantidade incrível de riqueza, de conhecimento, de delicadeza.
Essa resposta está salva no meu celular, eu já li várias vezes.
Você raptou minha resposta. Então, eu sinto isso sabe, que o Dudi traz o
yoga que não chegou no ocidente direito, porque não é interessante para
essa cultura que a gente criou de aparências e de fisicalidade e de estética.
Inclusive, tem até a história, tem um livro que você me deu, Yoga Body, que
fala isso, que muito do que a gente olha hoje e chama de yoga... A gente fala
que yoga é uma arte milenar, datada de mais de cinco mil anos, mas quando
a gente fala isso a gente não está falando desses asanas que a gente está
fazendo nas escolinhas de yoga, que são esses asanas mais retos, o famoso
virabhadrasana, os triângulos, isso tudo veio depois da invasão na Índia.
Inclusive, esse livro que você citou aí a gente pode botar na descrição,
Yoga Body. Infelizmente, eu acho que não tem em português, a não ser que
nos últimos dois anos aí tenha lançado, faz tempo que eu não pesquiso.
Para mim, ele deveria ser um pré-requisito para praticantes do yoga, que é
uma arte muito nobre, que é uma disciplina... eu também não gosto de
chamar de disciplina porque é isso, ele é uma perspectiva, é mais sobre
auto-conhecimento, sobre ir tirando as camadas do seu ser e ir se
descobrindo do que qualquer outra coisa. Só que sofreu muita influência dos
rotocionistas suíços, da ginástica inglesa e aí foi se tornando uma outra
coisa. E hoje em dia, muita gente está fazendo o resgate muito legal disso,
da essência mesmo do yoga.
Enfim, quer falar mais alguma coisa sobre isso?
Só para eu finalizar que yoga, o nome yoga significa união, reunião de
matéria e espírito, então na verdade yoga é um caminho, é um caminho,
é muito maior que uma prática física de asanas, é uma coisa muito maior.
Dava para a gente ficar mais umas três horas aqui, que é muita coisa.
A gente não falou da parte da comunidade no Movement Camp mas eu acho
que a gente abriu essa porta desse nosso novo canal aqui. Não vai ser difícil
eu entrar em contato com você, a gente mora junto, então a gente pode
organizar um outro ai, vocês podem mandar perguntas também nos nossos
canais de comunicação. Dentre várias coisas que a Bela é que a gente disse
logo no início, a gente não mencionou uma delas que ela é uma mãe e isso
tem muito a ver com prática, com prática de vida. Ela é uma mãe na
pandemia e isso aí dá ainda mais tempero e a gente poderia até falar sobre
isso no futuro, sobre a prática em família, sobre os desafios, sobre como
manter uma prática física com todos esses desafios no home office ou não,
não importa, de qualquer maneira é um desafio. Então, mais um aspecto aí
dessa mulher transdisciplinar. E agora, eu vou te fazer uma pergunta que é
aquela pergunta chata que geralmente quem entrevista faz, inclusive é a
primeira entrevista que eu estou fazendo na vida. Foi mais um bate-papo do
que uma entrevista vai, mas de vez em quando eu estou assumindo esse
papel aqui de entrevistador. De vez em quando tem umas perguntas chatas,
que se fizessem para mim eu ia ficar puto mas me deu vontade de fazer para
você. Então, existiria uma palavra para traduzir transdisciplinaridade?
Existe, eu vou falar só porque é o final e a gente já falou bastante porque
senão é fácil das pessoas reduzirem, mas eu acho que se é para escolher
uma palavra para dizer o que é uma postura transdisciplinar
na vida é essa abertura com rigor.
Abertura, gostei. Você escolheu uma palavra aberta. Ou seja, ela fugiu muito
bem galera. Ela não fugiu não, respondeu de verdade. É isso, é abertura, estar
aberto para possibilidades, é a nuvem, é absorver o que funciona, o que faz
sentido, descartar o que não funciona. Com certeza abertura é uma ótima
palavra. Parabéns, eu não tinha pensado nisso. Massa, muito obrigado,
eu acho que foi muito bom para a gente começar, se vocês tiverem
perguntas, sugestões, opiniões sobre esse nosso episódio, pode mandar nos
nossos canais, vai estar tudo na descrição, instagram, site, email, whatsapp
da Pratique Movimento. Pode procurar a Bela nas
redes também. E é isso, muito obrigado.
Brigada você.
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